Enriquecendo o conjunto de linhas internacionais de pobreza

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A pobreza é absoluta ou relativa? Ao pensarmos na pobreza de renda (unidimensional), devemos definir o limiar que separa os pobres dos não-pobres como o custo de uma cesta básica de bens e serviços fixos que possibilite às pessoas suprirem suas necessidades básicas? Ou será que devemos encará-la como uma privação relativa: pessoas com remuneração - ou consumo - inferior a uma determinada parcela do padrão de vida médio no país?

Essa é uma discussão antiga, e as instituições internacionais seguiram caminhos diferentes. A União Europeia (por meio do Eurostat) e a OCDE costumam adotar linhas de pobreza relativas, fixadas em 50% ou 60% da renda média nacional. Já o Banco Mundial, tradicionalmente, utiliza uma linha de pobreza absoluta - atualmente, US$ 1,90 por pessoa, por dia, em dólares na paridade do poder de compra (PPC) de 2011.
 
O Banco Mundial visava medir a pobreza entre os países de forma consistente com o bem-estar: queríamos que a Linha Internacional da Pobreza (LIP) correspondesse, na medida do possível, ao mesmo nível de bem-estar, independentemente do país onde a pessoa vivesse. Foram utilizadas taxas de câmbio com PPC para tentar representar as diferenças de custo de vida entre os países.
 
Com esse ajuste, a intenção era de que a linha refletisse os mesmos níveis de bem-estar - algo que seria impossível se usássemos, por exemplo, metade da renda mediana em Madagascar e na República Tcheca. O valor específico da linha internacional da pobreza foi, por concepção, ancorado nas linhas de pobreza adotados por alguns dos países mais pobres do mundo (ver Ravallion, Datt e van de Walle).

No entanto, à medida que as contagens de pobreza global começaram a atrair mais atenção nos países menos pobres, a frugalidade (intencional) da linha passou a receber algumas críticas. Visto que o primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, o primeiro dos Objetivos do Banco Mundial e, mais recentemente, o primeiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável foram expressos ​​em termos da proporção de pessoas que vivem com menos do que a Linha Internacional da Pobreza, os analistas em países de renda média também começaram a dar mais atenção à LIP. Muitos acharam difícil conciliar a linha de US$ 1,90 com o conceito de pobreza - ou mesmo de pobreza extrema - em seus respectivos países.

Na nossa opinião, o motivo é algo que Amartya Sen propôs há quase quarenta anos.  Sen argumentou que havia - e deveria haver - um "núcleo absolutista irredutível na ideia de pobreza", mas que o absolutismo se situava no espaço das capacidades: o que as pessoas podem ser, aquilo que podem fazer ou desfrutar. É possível - até provável - que, em países (ou momentos) diferentes, um mesmo conjunto de capacidades necessite de cestas de bens e serviços diferentes. Os bens necessários para alguém se aquecer na República Centro-Africana podem ser completamente diferentes dos bens necessários na Polônia. Os bens e serviços necessários para as pessoas buscarem emprego de forma eficaz em um vilarejo em Uttar Pradesh e na Cidade do México podem ser bem distintos. Uma linha de pobreza absoluta no espaço das capacidades pode revelar-se relativa no espaço dos bens (e, portanto, da renda).

Essa noção parece ser corroborada, empiricamente, pelas mesmas linhas nacionais de pobreza às quais os pesquisadores do Banco Mundial atrelaram a nossa LIP. A Figura 1 mostra que, quando as linhas nacionais são comparadas com qualquer medida do padrão de vida médio em nível nacional - como a medida da Despesa de Consumo Final das Famílias nas contas nacionais, ou o PIB per capita - há uma correlação positiva clara. Isso ocorre mesmo quando os países mais ricos - cujas linhas são, muitas vezes, explicitamente relativas - são excluídos da amostra. Em outras palavras: dessa forma, mesmo nos países que adotam a abordagem absoluta ao definir as linhas de pobreza, o custo de sair da pobreza costuma aumentar junto com a renda média.

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Essa observação pode levar a um de dois caminhos. Um deles é construir uma linha internacional de pobreza alternativa -  possivelmente um limite superior - cujo valor variaria sistematicamente entre os países. Essa ideia foi proposta por Tony Atkinson e François Bourguignon em 2000 (a versão pré-publicação está disponível aqui) e, desde então, vem sendo defendida por Martin Ravallion e Shaohua Chen aqui (entre outros locais) e por Dean Jolliffe e Espen Prydz, aqui.
 
Em resposta à Recomendação 16 do Report of the Commission on Global Poverty (Relatório da Comissão sobre Pobreza Global), o Banco Mundial passará a informar essa contagem alternativa da pobreza global - com respeito a uma linha de pobreza internacional representativa de toda a sociedade - na próxima atualização dos números da pobreza global, prevista para outubro de 2018.

O segundo caminho é ainda mais simples: poderíamos dividir os países do mundo em diversas faixas de renda - usando, por exemplo, a própria classificação de renda do Banco Mundial, que consiste em baixa renda; renda média-baixa; renda média-alta; e alta renda - e, em seguida, escolher linhas de pobreza típicas de cada um desses grupos, da mesma forma que a linha de US$ 1,90 é típica dos países mais pobres. Essas ainda seriam linhas de pobreza absolutas, mas com valores mais elevados e, possivelmente, mais relevantes para os países de renda média e alta.

É justamente isso que Jolliffe e Prydz discutem em outro documento, publicado no ano passado. Primeiro, eles construíram um novo conjunto de dados aprimorados, com linhas de pobreza nacionais e comparáveis, combinando as taxas de pobreza que cada país informa aos Indicadores de Desenvolvimento Mundial com as distribuições de renda e consumo da PovcalNet. Das 864 linhas disponíveis para cada ano, eles se concentram nas 115 linhas nacionais mais próximas do período de referência de PPC 2011.  Estas são as linhas da Figura 1, acima.

Esse grupo de 115 países inclui 33 países de baixa renda, com uma linha de pobreza mediana de US$ 1,91 por pessoa, por dia.  Considerando que , na realidade , não foi assim que os US$ 1,90 em PPC de 2011 foram calculados originalmente, esse número demonstra a relevância e a robustez dessa linha como patamar típico dos países mais pobres do mundo.  O grupo também inclui 32 países de renda média-baixa, com uma linha de pobreza mediana de US$ 3,21, e outros 32 países de renda média-alta, com uma linha de pobreza mediana de US$ 5,48. Há também 29 países de alta renda, com uma linha mediana de US$ 21,70/dia, correspondente à linha amarela na Figura 1, mas não usaremos essa linha no que se segue.

A partir deste mês, o Banco Mundial informará as taxas de pobreza para todos os países usando duas novas linhas internacionais de pobreza: uma linha internacional de pobreza de renda média-baixa, fixada em US$ 3,20/dia; e uma linha internacional de pobreza de renda média-alta, fixada em US$ 5,50/dia. Elas complementarão a Linha Internacional da Pobreza de US$ 1,90, que continua sendo o nosso limite de pobreza e continua a nortear o objetivo do Banco de acabar com a extrema pobreza no mundo até 2030. Essas duas linhas correspondem às linhas horizontais vermelha e verde sobrepostas no gráfico de dispersão da Figura 1, e substituirão as linhas "regionais" mais elevadas e informadas, anteriormente, em relação a certas regiões (como a Europa e Ásia Central e a América Latina e Caribe) em alguns documentos do Banco Mundial.

O uso dessas linhas tem duas finalidades. Como já foi explicado, trata-se de uma forma simples de levar em consideração o fato de que as mesmas capacidades podem exigir bens e serviços diferentes em cada país (e também mais caros, no caso dos países mais ricos). Além disso, possibilita comparações entre países, tanto dentro das regiões em desenvolvimento como entre elas, algo que vem interessando cada vez mais aos países e que não era possível antes, apenas com linhas regionais. Mais informações sobre as taxas de pobreza nos níveis nacional e regional, utilizando as linhas internacionais de pobreza de US$ 1,90, US$ 3,20 e US$ 5,50, podem ser encontradas na PovcalNet e no recém-renovado Portal de Dados sobre a Pobreza e a Equidade.

A Figura 2, abaixo, ilustra as implicações. Usando a Linha Internacional da Pobreza (US$ 1,90), a incidência de pobreza nos países de renda média-baixa é de 15,5%, contra 45,8% em países de baixa renda. Usando a linha de US$ 3,20, no entanto, a incidência nos países de renda média-baixa é de 46,7%. Da mesma forma, nos países de renda média-alta, a incidência com a linha de US$ 1,90 é de apenas 2,3%, contra 29,2% com a linha de US$ 5,50.

Uma coisa deve ficar bem clara: a linha utilizada pelo Banco Mundial para definir a pobreza extrema em nível global permanecerá inalterado: US$ 1,90/dia. O objetivo do Banco de acabar com a pobreza até 2030, bem como o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 1.1 das Nações Unidas foram definidos com base nessa linha. No entanto - conforme Amartya Sen observou há tantos anos e a Comissão Atkinson nos lembrou mais tarde -, a pobreza não é um conceito definido de forma única e exclusiva. Existe um elemento inevitável de arbitrariedade na escolha de qualquer linha de pobreza, por mais cuidadosa que seja a sua definição. Em 1987, Tony Atkinson escreveu que "é provável que haja uma diversidade de julgamentos que afetam todos os aspectos da medição da pobreza e [...] precisamos reconhecer isso, explicitamente, nos procedimentos que adotamos.”

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Portanto, com o intuito de reconhecer que a pobreza absoluta, em termos de capacidade, pode muito bem significar uma pobreza (fracamente) relativa no espaço da renda, os usuários dos dados de pobreza do Banco Mundial agora terão acesso a mais essas duas linhas de pobreza, construídas pensando nos países de renda média-baixa e média-alta, e calculadas de acordo com o procedimento descrito acima.

Daqui a 12 meses, quando for lançada a próxima atualização sobre a pobreza global, elas serão complementadas por uma LIP representativa de toda a sociedade, entre outras inovações. Cada vez mais, pretendemos conjugar a nossa fé na utilidade duradoura da Linha Internacional da Pobreza, originalmente concebida por Ravallion e outros como a linha do "dólar por dia", com o reconhecimento da sabedoria por trás da abordagem de "diversidade de julgamentos" de Atkinson. A linha de US$ 1,90/dia continua sendo o "prato principal", embora o cardápio do Banco Mundial de monitoramento da pobreza global tenha sido ampliado.

Authors

Francisco Ferreira

Former Acting Director for Development Policy in the World Bank’s Development Research Group

Carolina Sánchez-Páramo

Director, Strategy and Operations, Europe and Central Asia

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