Cacau baiano: uma doce despedida

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O mel de cacau tem provavelmente o sabor mais doce e intenso que já provei na vida. É extraído da pele branca que reveste as sementes frescas do cacau, que são envoltas em uma folha de bananeira até que todo o suco tenha saído. Essa é apenas uma das delícias tropicais que tive o privilégio de experimentar durante minha recente viagem ao estado da Bahia, no Nordeste do Brasil. Também teve açaí, jaca, cupuaçu, cajá (esses últimos dois geralmente consumidos como suco), licuri (coquinho de uma palmeira usado para a produção de óleo, mas também consumido torrado e salgado), bananas e – claro – chocolate.

Todas essas frutas crescem nas florestas tropicais da costa do Atlântico, que foi desmatada em grande parte para a plantação de cana-de-açúcar durante os séculos XVIII e XIX. Parte da Mata Atlântica ainda existe no sudeste da Bahia graças ao cacau. O cacaueiro, que dá origem ao cacau, consegue crescer sob a sombra de outras árvores tropicais e consequentemente favorece a preservação da mata original. Durante o “boom” do cacau  nos anos 70 e início dos anos 80, quase dois terços do PIB total da Bahia vinha das plantações de cacau. Os donos eram multimilionários vivendo em diferentes partes do mundo, enquanto a população continuava extremamente pobre, a maioria analfabeta e mantida em condições análogas à escravidão. Nos anos 90, uma praga chamada de “vassoura de bruxa” mudou tudo, destruindo 90% das plantações de cacau e devastando a economia local. Muitas plantações foram convertidas em pastos, que requerem menos trabalho, agravando a crise econômica e social local.

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Mas a crise desencadeou uma sucessão de mudanças graduais na economia rural, uma vez que os trabalhadores que perderam seus postos nas plantações se uniram, ocuparam terras improdutivas e começaram a formar cooperativas rurais. Uma delas é o Assentamento Terra Vista, criado há 28 anos e formado hoje por 55 famílias. A cooperativa restaurou cerca de 60 hectares de floresta tropical, plantando cacau resistente às pragas intercalados com outras frutas tropicais usando o sistema de plantação mista “Cabruca”. Os cacaueiros crescem nesse ambiente, se beneficiando dos nutrientes gerados pelas outras plantas, a sombra das outras árvores, e a distância entre as plantações diminuem os riscos de novas pragas. Os produtores do Terra Vista estão conseguindo rendimentos de até 60 sacos (de 90 kg cada) por hectare, pelo qual recebem cerca de R$ 150 por saco. Uma família consegue facilmente cultivar até 4 hectares de Cabruca, com rendimento bruto de R$ 36.000,00 por ano. Mas essa não é a única fonte de renda para eles – a colheita de açaí, cupuaçu, cajá e banana trazem cada uma mais R$ 10.000,00 por hectare em um bom ano. A renda total da colheita pode chegar entre R$ 50 e R$ 60 mil por hectare, o suficiente para elevar uma cooperativa familiar para a classe média-alta brasileira, mesmo após descontar os custos de produção. E as notícias boas não acabam por aí: a restauração da floresta tropical levou a uma recuperação dramática do ecossistema local, restaurando o ciclo da água e assegurando a sustentabilidade a longo prazo.
 
Terra Vista é também exemplo do potencial do manejo sustentável da floresta, que pode prover excelentes oportunidades de renda para a população local ao mesmo tempo que preserva ou, como nesse caso, até restaura o meio-ambiente, tema que já abordei no texto sobre minha visita ao Acre. O que faz a experiência baiana especial é como as cooperativas de agricultura familiar estão de forma crescente chegando aos consumidores do setor privado. Essa é a essência do projeto Bahia Produtiva, que iniciou uma nova fase de trabalho com cooperativas rurais, construindo experiências positivas como em estados mais avançados, a exemplo de Santa Catarina e São Paulo.  Uma das empresas privadas é a fábrica de chocolate Amma, especializada em chocolates orgânicos de alta qualidade, que vende não apenas para o Brasil, mas também para outros 17 países ao redor do mundo. Amma não é a única investidora que está redescobrindo o potencial do cacau baiano. Esses investidores são auxiliados por uma Organização Social vinculada ao Governo do Estado da Bahia, Instituto Biofábrica do Cacau, destinado à produção contínua, em escala industrial, de genótipos (clones) de cacaueiros selecionados, resistentes a enfermidades e de alta produtividade. Essas variantes de cacau são desenvolvidas e distribuídas a preço de custo para as cooperativas. Uma rede produtiva local se desenvolveu, mas dessa vez está beneficiando milhares de agricultores familiares de cooperativas ao invés de poucos fazendeiros donos de terras, e o cacau está sendo processado para criar o chocolate localmente e não sendo exportado apenas como matéria prima.


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O ciclo do cacau se sustenta financeiramente bem para dar valor à perspectiva de sistemas florestais sustentáveis. Essa abordagem está ganhando repercussão internacional, como por exemplo o lançamento em 2018 da iniciativa CocoaAction Brazil durante reunião que uniu autoridades do governo brasileiro, a fundação World Cocoa, várias empresas internacionais (tais como Barry Callebout, Dengo, Cargill, Mars, Mondelez, Nestlé e Olam) e o Grupo Banco Mundial.
 
Além disso, vários outros produtos de cooperativas de produtores estão sendo comercializados de forma crescente, como mel, óleo de licuri, castanhas, palmito e açaí. E isso não se restringe a produtos agrícolas. A segunda parte da minha visita me levou à Bahia de Todos os Santos, uma baía imensa na qual a ponta sudeste abriga a cidade de Salvador. Com o apoio do projeto Bahia Produtiva, os pescadores locais investem em infraestrutura logística para serem capazes de abastecer o mercado de Salvador. A pesca na baía é artesanal por ser mais adequada – não há cardumes suficientes para justificar o uso de grandes embarcações e muitos dos mariscos são coletados à mão durante a maré baixa. Porém, os pescadores enfrentam grandes trajetos até a cidade e a falta de estruturas de resfriamento resultam na venda para intermediários, que facilmente ganham dois terços ou mais do valor de venda. A pescaria é intermitente e a atenção com a qualidade é baixa, resultando em preços igualmente baixos. De fato, Salvador importa uma parcela significante do seu consumo de frutos do mar e peixes de outros estados brasileiros. O projeto tem o objetivo de superar essa dificuldade por meio da criação de meios de produção sustentáveis para as comunidades pesqueiras locais e aumentar o fornecimento de produtos oriundos do mar em locais de alta qualidade para a população.
 

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Entre os apoiadores mais entusiásticos da emergente economia local estão os chefs mais inovadores de Salvador. A capital baiana tem uma culinária peculiar para a comunidade e os chefs estão presenteando os paladares com criações inusitadas baseadas em ingredientes regionais, seguindo os passos de Alex Atala, chef paulista mundialmente famoso. O projeto Bahia Produtiva contemplou até o momento 12 propostas que beneficiaram cerca de 350 cooperativas que apresentaram planos de negócios viáveis. Pode ser que nem todos irão prosperar. Eu escrevi um texto sobre alguns desafios após minha primeira visita ao projeto há três anos, mas os resultados positivos desde então são notáveis e encorajadores. Claramente é possível integrar um número significativo de produtores rurais na cadeia de valor baseada em investimentos públicos em conjunto com a iniciativa privada. Caso se sustente, isso pode gradualmente diminuir a dependência de subsídios dados pelo Estado à população rural, mesmo as que tenham alguma desvantagem, como no Nordeste.
 
Uma coisa não mudou na minha avaliação do conceito da aliança produtiva três anos após minha primeira visita: o papel da liderança local. A comunidade Terra Vista é liderada por Joelson, um homem na casa dos 50 anos, que dedicou a vida ao ativismo comunitário. Joelson tem uma visão para a sua comunidade. Ele sabe que para deixar de forma definitiva a pobreza, os membros da cooperativa terão que investir em educação. Ele defendeu o ensino sobre o cacau na comunidade, onde jovens da área recebem instruções técnicas básicas em sistemas de agro-processamento. No sistema integrado da fábrica de chocolate, conhecemos três adolescentes produzindo chocolate meio amargo de altíssima qualidade. A visão de Joelson está aos poucos se concretizando. Entre os pescadores, o líder é Mário, um senhor de 75 anos cheio de energia que organiza o processamento e armazenamento dos peixes para a comunidade das cooperativas de pescaria. Porém, o projeto não poderia se tornar realidade sem o apoio técnico de um grupo de voluntários da Humana, uma ONG internacional que está ajudando a introduzir o controle de qualidade e trabalhou com a comunidade para estabelecer e reforçar as diretrizes da pesca sustentável.
 

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Essa foi minha última visita a projetos no Brasil. Um doce e esperançoso adeus. Agradeço muitíssimo por essa oportunidade e por tantas outras que tive o prazer de ter no país.


Autores

Martin Raiser

Vice President for the South Asia Region, World Bank Group

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