O Brasil ainda precisa enfrentar os desafios do século 20 relacionados à água

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E nisto consiste a minha honra e recompensa,
Toda vez que venho à fonte para beber encontro a própria água sedenta,
E ela me bebe enquanto eu a bebo.
Extraído do livro “O Profeta”, de Gibran Khalil Gibran
 

No dia 22 de março, comemora-se o Dia Internacional da Água. Mais do que uma comemoração, essa data destaca a importância da água para o desenvolvimento global. Sem dúvida, desde que foi instituída na Rio 92 e começou a ser celebrada em 1993, há avanços importantes em acesso aos serviços, como demonstraram as metas de Desenvolvimento do Milênio, mas há muitos desafios à frente, tanto em acesso, especialmente para os mais pobres, quanto à sustentabilidade dos recursos hídricos e dos serviços de água e saneamento.

A superação desses desafios está consubstanciada nas novas metas de desenvolvimento sustentáveis, em que o acesso a serviços melhorados avança em direção ao acesso a serviços seguros e sustentáveis. Em 2017, o Dia Mundial da Água se dedicará ao tema dos esgotos, à necessidade de seu adequado tratamento, incluindo temas emergentes como reúso.

Os recursos hídricos e os serviços de água, tanto para uso humano quanto para agricultura e indústria, são muito vulneráveis às condições precárias de desenvolvimento em muitos países e aos efeitos das mudanças climáticas. Enquanto alguns países sofrerão com aumento das chuvas e das inundações e enchentes, muitos outros, especialmente aqueles em desenvolvimento, sofrerão com secas cada vez mais intensas e prolongadas.

A precariedade dos serviços, a menor disponibilidade de água segura e sustentável, agravadas pelas mudanças climáticas, poderão ter efeitos sociais, econômicos e políticos regionais de grande monta. Migrações, conflitos, escassez de alimentos e de energia poderão se associar aos efeitos na saúde e desenvolvimento precário de crianças em países menos desenvolvidos e mais vulneráveis, entre outros. Os conflitos crescentes pelo uso da água exacerbam ainda a necessidade do entendimento do vínculo entre água, agricultura e energia, que precisam ser considerados nas políticas nacionais e regionais de gestão e alocação dos recursos hídricos aos seus usos múltiplos.

O Brasil, além do déficit no acesso a serviços sustentáveis, também é muito vulnerável a eventos climáticos extremos, como secas mais intensas e prolongadas e enchentes mais frequentes. Essa combinação de fatores – déficit de acesso aos serviços e vulnerabilidade a mudanças climáticas - aumenta os desafios do país na gestão dos seus recursos hídricos e na ampliação dos serviços sustentáveis. Essa é uma combinação necessária: gestão eficiente dos recursos e dos serviços, investimentos em segurança hídrica e no acesso aos serviços.

Embora rico em disponibilidade hídrica média, o Brasil apresenta regiões de grande variação hídrica. As grandes disponibilidades estão concentradas no norte e oeste do país, onde a densidade populacional é baixa. Entretanto, as grandes concentrações populacionais estão localizadas no Sudeste e Nordeste, onde grandes cidades e aglomerações urbanas e metropolitanas se situam em regiões de estresse hídrico e de escassez.

O enfrentamento desse duplo desafio requer melhoras contínuas de gestão. Por exemplo, no semiárido brasileiro residem 23 milhões de pessoas em 1.135 municípios. Essa região apresenta baixas médias de precipitação anual, e são sujeitas a secas periódicas e prolongadas. Neste momento, essa região vem sendo afetada por uma seca que se aproxima do sexto ano consecutivo, a maior em 100 anos de registro.

Ao longo das últimas décadas, melhorou-se a gestão das águas, ainda que muito falte, e se implantou uma infraestrutura hídrica importante, mas ainda insuficiente, de integração de bacias, de transferência, por meio de barragens, canais e adutoras, de bacias com maior disponibilidade para bacias com menor disponibilidade hídrica. Muitas dessas infraestruturas regionais foram resilientes por alguns anos, mas começam a falhar com a seca mais severa.

Para lidar com esse fenômeno, que pode se agravar e se tornar mais frequente em função das mudanças climáticas, é preciso melhorar ainda mais a gestão, da oferta e da demanda, e também melhorar e ampliar a infraestrutura de segurança hídrica e de acesso aos serviços. A transposição do Rio São Francisco integra essa lógica, mas é preciso ir além: aumentar a eficiência da irrigação, reduzir perdas em sistemas de água, adotar mecanismos econômicos de indução à eficiência do uso da água, e de equidade social para garantir acesso aos serviços dos mais pobres, que são os mais vulneráveis também aos efeitos do clima.

Outro tipo de problema se refere às grandes aglomerações urbanas, como São Paulo, onde a demanda excede em muito a disponibilidade local, sendo necessário, assim como no semiárido, instalar sistemas de âmbito regional, para garantir a segurança hídrica, reduzir a poluição dos mananciais, por meio do tratamento dos esgotos, aumentar a flexibilidade na gestão dos diversos mananciais e eficiência no uso dos recursos e da infraestrutura, incluindo novas soluções de oferta de água, como reúso. Sistemas regionais também favorecem a equidade social no acesso aos serviços, uma vez que populações mais pobres, em geral, ocupam áreas menos dispostas de infraestrutura e mais vulneráveis a eventos climáticos intensos.

Embora o Brasil tenha avançado muito nas últimas décadas, especialmente se considerarmos o crescimento populacional e urbanização acelerados desde os anos 1960/70, o país ainda precisa enfrentar os desafios do século 20 – acesso aos serviços, ainda não integralmente alcançados, e aqueles que se colocam no século 21 – mudanças climáticas e seus efeitos severos na disponibilidade e segurança hídrica.

O enfrentamento desse duplo desafio requer melhoras contínuas de gestão, estabelecimento de instrumentos de indução ao uso eficiente de recursos hídricos, aproximação entre a operação (hidrologia e serviços) e ciência (clima), e ampliação dos investimentos para a garantia da segurança hídrica e para acesso sustentável e equitativo aos serviços. É preciso avançar dos discursos às práticas.

Num ambiente econômico restritivo, será preciso inovar e ser criativo na busca de novos mecanismos de financiamento, priorizar a água na agenda política nacional e definir políticas, instituições, regras que incentivem a eficiência e a expansão dos investimentos.

Artigo publicado originalmente no Nexo Jornal em 22 de março de 2017.


Autores

Thadeu Abicalil

Especialista sênior em água e saneamento

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